Há bastante tempo estudamos o mercado de investimentos de impacto e refletimos sobre como a Spectra deveria se posicionar. Enxergamos esse segmento como uma evolução relevante do mercado de investimentos, mas identificamos algumas limitações em sua forma de implementação, que, em nossa visão, comprometem parte de seu potencial de efetividade.
Nesta carta, apresentamos nossa visão sobre o conceito de investimentos de impacto, abordando os desafios relacionados à sua mensuração, padronização, implementação e escalabilidade. Ao final, propomos uma abordagem intermediária e mais pragmática para sua aplicação.
Antes de avançarmos, é importante esclarecer como definimos negócios de impacto. Para nós, são empresas que possuem um duplo objetivo: gerar lucro e, ao mesmo tempo, promover impacto social e ambiental positivo. Essa definição está alinhada à adotada pelo GIIN (Global Impact Investing Network), uma das principais referências do setor. Ainda assim, consideramos essa definição limitada, e, ao longo do texto, apresentaremos os motivos que fundamentam nossa visão.
Iniciamos nossa análise pela forma como o impacto é mensurado. De acordo com o GIIN, investimentos de impacto são aqueles realizados com a intenção de gerar impacto social e/ou ambiental positivo e mensurável, juntamente com retorno financeiro. Destacamos, nessa definição, dois elementos centrais: a intencionalidade e o foco na primeira derivada do impacto gerado.
Na nossa visão, os investimentos de impacto deveriam, em teoria, ser quase sinônimos de investimentos que geram externalidades líquidas positivas.
Explicamos: o mercado capitalista funciona de forma bastante eficaz para bens e serviços com alta internalidade. Produtos que geram utilidade para os consumidores são vendidos e, ao serem consumidos, melhoram a vida das pessoas, o que gera maior demanda e a vontade de possuí-los. O lucro proveniente dessas vendas remunera a empresa produtora.
Essa é a lógica da internalidade do capitalismo. Empresas produzem bens e serviços que geram utilidade e, por isso, existem consumidores dispostos a pagar por eles. Além disso, empresas também geram empregos, pagam impostos e impulsionam a economia – contribuições reais para a sociedade. Ao entregarem utilidade, geram receita e lucro. A nosso ver, grande parte dos bens e serviços comercializados atualmente contribui para a melhoria da qualidade de vida dos consumidores (por exemplo, nas áreas de saúde, educação, entretenimento, entre outras). Nesse sentido, investimentos tradicionais também tem impacto positivo, e não apenas os investimentos de impacto por definição.
É equivocado assumir que investimentos de impacto se restringem a empresas que atendem exclusivamente populações em situação de vulnerabilidade. O mundo também precisa de sapatos, pregos e estradas — e as empresas que produzem esses bens essenciais geram impacto positivo e necessário para o progresso da sociedade.
Por outro lado, existem benefícios que não são capturados diretamente pelo cliente ou pela empresa. Um exemplo clássico de externalidade positiva é o de alguém que cuida do próprio jardim, deixando a rua mais bonita para todos. No mundo corporativo, externalidades positivas podem surgir, por exemplo, de uma empresa de educação profissionalizante. A internalidade vem de clientes que compram cursos profissionalizantes e, em troca, aprendem técnicas que os permitem se desenvolver profissionalmente. A externalidade vem do fato de existirem mais programadores de software treinados no Brasil, o que permite um maior desenvolvimento de start-ups e, consequentemente, um maior crescimento econômico do país.
Externalidades negativas tendem a ser mais fáceis de identificar. As mais interessantes surgem da diferença entre o que as pessoas querem e o que elas precisam. Um exemplo claro e atual são as redes sociais: embora amplamente utilizadas, muitos acreditam que causam efeitos nocivos à saúde mental e, portanto, uma externalidade negativa. Ainda que algumas dessas externalidades sejam evidentes, reconhecemos a complexidade envolvida em determinar quem está legitimamente apto a julgar o que é “necessário” em contraposição ao que é “desejado”.
Portanto, um verdadeiro investimento de impacto seria aquele capaz de gerar externalidades positivas relevantes. De acordo com a metodologia da TPG, que possui uma área de impacto amplamente desenvolvida, a métrica ideal para mensurar esse tipo de investimento é o Impact Multiple of Money (IMM). De forma simplificada, ela mede quanto de externalidade líquida (positiva menos negativa) foi gerada, dividida pelo total de capital investido.
Um dos principais desafios na metodologia de cálculo da externalidade é que ela não para na primeira derivada, e calcular os impactos de múltiplas derivadas torna-se quase impossível. Isso se assemelha ao chamado “efeito borboleta”, que bate as asas e gera um furacão no outro lado do mundo. Em outras palavras, a externalidade gerada por um produto vai além do benefício direto que ele proporciona, estendendo-se aos efeitos indiretos que ele provoca na sociedade como um todo.
A seguir, ilustraremos um exemplo prático do nosso portfólio, apesar de sabermos que poderá causar controvérsia: investir em uma mineradora de cobre pode ser considerado um investimento de impacto?
Em nossa visão, sim. Um aumento nos investimentos em mineração tende a elevar a produção de cobre. Com o crescimento da oferta, o preço global do cobre — um insumo essencial na fabricação de smartphones — tende a recuar. Essa redução de custo pode tornar os smartphones mais acessíveis, ampliando seu alcance. Os smartphones, por sua vez, desempenham um papel fundamental na inclusão digital, especialmente entre populações de baixa renda. Portanto, ao investir em uma mina de cobre, contribui-se indiretamente para a inclusão digital de um número maior de pessoas.
Naturalmente, esse tipo de investimento gera uma série de impactos de segunda e terceira ordem. Mensurar todos esses efeitos, na prática, é inviável. Por essa razão, é comum que metodologias de mensuração, como a do GIIN, concentrem-se apenas nos impactos de primeira ordem.
Restringir a análise aos impactos de primeira ordem possui o benefício adicional de torná-la mais tangível. Por exemplo, não é possível afirmar com precisão que uma criança em situação de vulnerabilidade tornou-se mais saudável ou feliz em decorrência de um investimento em uma mina de cobre. No entanto, isso não implica que o impacto tenha sido menor — apenas que ele é menos evidente. Impactos indiretos, por sua natureza, tendem a gerar uma percepção menos imediata e clara do que aqueles de efeito direto.
Acreditamos que essa limitação na mensuração, somada ao viés natural de alocarmos recursos onde nos sentimos bem – e não necessariamente onde se gera o maior bem – é um dos principais obstáculos para a implementação correta dos investimentos de impacto. É possível que, no futuro, surja uma solução para esse dilema, mas, até o momento, ela ainda não foi encontrada.
Um dos grandes desafios dos investimentos de impacto está na tentativa de padronizar aquilo que, por natureza, não é padronizável — ou seja, como tornar comparáveis bens e valores que são, essencialmente, únicos. Como atribuir valor a uma vida salva? E mais difícil ainda: como decidir se é mais relevante promover a diversidade ou preservar o meio ambiente?
No capitalismo tradicional, há uma única central, o retorno financeiro, que facilita a definição de prioridades. Porém, dar prioridade a itens tão discrepantes entre si, é muito mais complexo. Essa dificuldade se reflete, por exemplo, na falta de consenso entre os diferentes institutos que avaliam o desempenho ESG de empresas de capital aberto. Um caso notório foi a falta de consenso entre os diversos institutos se o investimento na Tesla era ESG-compliant ou não. Alguns diziam que sim, outros que não. A ausência de padronização compromete significativamente a comparabilidade e a eficiência desses modelos.
Na nossa visão, esse dilema é irresolvível. Isso porque os critérios relacionados a impacto ou ESG são baseados em valores morais – que, por natureza, variam de pessoa para pessoa, sem que exista uma resposta correta. Dito isso, cada indivíduo deveria montar o seu portfólio pessoal com base em seu ranking de valores morais. No entanto, além de ser um exercício altamente complexo, essa abordagem impõe limitações significativas à escalabilidade do modelo.
Nosso último questionamento diz respeito a uma visão que, a nosso ver, é romântica — embora amplamente difundida no universo dos investimentos de impacto — de que seria possível alcançar o melhor dos dois mundos.
De acordo com essa perspectiva, a mentalidade das pessoas está mudando e, com isso, empresas que possuem um olhar mais atento para o lado humano e ambiental serão mais competitivas. Assim, seria possível investir em empresas com alto impacto positivo e, ao mesmo tempo, obter altos retornos financeiros.
Consideramos essa visão limitada. Concordamos com a ideia de que o weltanschauung da sociedade está mudando, com maior valorização do bem-estar coletivo, e que empresas alinhadas com esse novo espírito tendem a estar mais bem posicionadas para o futuro.
Por outro lado, é matematicamente inviável maximizar duas variáveis ao mesmo tempo. Um empreendedor pode optar por maximizar o valor presente dos lucros futuros ou maximizar o impacto positivo gerado à sociedade. Embora essas alternativas não sejam mutuamente excludentes, nem sempre estão alinhadas.
A existência de uma segunda variável implica, necessariamente, que o ponto ótimo entre as duas fique, necessariamente, abaixo do que seria possível se apenas uma variável existisse. Exemplos claros desta dificuldade em maximizar simultaneamente duas variáveis são apresentadas nos estudos abaixo:
Em outras palavras, é possível maximizar os lucros a partir de um nível pré-definido de impacto, ou maximizar o impacto com um nível pré-estabelecido de retorno financeiro — mas não ambos simultaneamente em seu potencial máximo. Não se pode ter tudo. Inevitavelmente, trade-offs existem.
Um desdobramento relevante do ponto anterior diz respeito à escalabilidade de empreendedores que têm o impacto como principal variável de maximização de valor em um mundo essencialmente capitalista. Hipoteticamente, ao compararmos duas empresas atuando no mesmo setor – uma orientada à maximização do impacto social e outra à maximização do lucro – é provável que, em um ambiente competitivo, a segunda conquiste maior participação de mercado, escale sua operação com mais eficiência e, eventualmente, torne a primeira irrelevante. Em outras palavras, o empreendedor que prioriza a eficiência é quem ganha e cresce. Já aqueles que optam por priorizar outras variáveis, obtém ROEs menores e, como consequência, tendem – em média, já que exceções sempre existem – a perder relevância ao longo do tempo.
Consideramos nobre a proposta dos investimentos de impacto e reconhecemos seus méritos. No entanto, ainda não se encontrou uma forma de implementá-los de maneira verdadeiramente eficiente e escalável, a ponto de gerar um impacto relevante na sociedade. Acreditamos, porém, que essa é uma questão de tempo e que, com o amadurecimento do setor, os desafios atuais serão superados.
Enquanto isso, observamos uma série de problemas e más práticas no mundo dos investimentos. Essas condutas têm como consequência efeitos negativos evidentes — que não estão sujeitos a interpretações morais — e criam mercados disfuncionais que prejudicam a sociedade como um todo.
Dessa forma, antes de priorizarmos a maximização das externalidades positivas dos nossos investimentos, acreditamos ser mais eficiente focar na eliminação das externalidades negativas. “Do no evil”, antes de nos preocuparmos em definir qual valor moral deveria ser prioridade na geração de benefícios sociais.
Entendemos que generalizar a proposição de redução das externalidades negativas pode gerar um impacto significativamente maior do que concentrar esforços apenas no aumento das externalidades positivas. Antes de avançarmos para as etapas mais ambiciosas do capitalismo consciente, parece mais sensato erradicar práticas deletérias do ecossistema.
Agora, vamos sair do conceito e tentar tangibilizar um pouco mais o que queremos dizer com isso.
Estamos há mais de 15 anos atuando no mercado de investimentos no Brasil e na América Latina. Ao longo dessa trajetória, investimos em fundos de mais de 30 gestores por meio de nossa estratégia de primários, realizamos co-investimentos diretos em mais de 50 empresas e concluímos mais de 80 transações secundárias. Para alcançar esses números, analisamos centenas de oportunidades ao longo do tempo e já vimos de tudo por aqui.
Infelizmente, ao longo desse período, nos deparamos com diversas práticas que preferíamos não ter presenciado. Mais preocupante ainda, foi ver o grau de aceitação da comunidade de investidores em relação a essas ações que consideramos pouco republicanas.
Para ilustrar, decidimos listar algumas das situações que vivenciamos nesse período. O exercício foi extenso e, ao final, nos surpreendemos com a quantidade de casos dos quais nos deparamos ou ficamos sabendo a respeito.
Optamos por omitir nomes e preservar os envolvidos, mantendo os exemplos em termos mais genéricos para evitar qualquer identificação.
Vale o disclaimer de que, obviamente, nem todos os players adotam esse tipo de prática. Trata-se de uma minoria, mas, infelizmente, não são poucos.
O mal causado pelas práticas acima mencionadas é real, mensurável e relativamente simples de ser mitigado. Na nossa visão, é esse tipo de atitude que precisa ser tratado com prioridade.
O primeiro passo é mudar os ângulos da nossa Janela de Overton sobre o que consideramos aceitável e inaceitável no mundo dos negócios.
Overton criou o conceito de “janela” ao descrever o conjunto de ideias consideradas socialmente aceitáveis para o debate público em um dado momento. Ideias dentro da janela são aceitáveis, enquanto as que estão nas extremidades não são. Importante destacar que a “janela” não é fixa, ela se desloca com o tempo, tanto em termos do que pode ser discutido quanto da posição de seu ‘centro’. Para exemplificar: o que é considerado “de direita” no espectro político europeu pode ser bem diferente do que se entende “por direita” nos EUA, devido às diferentes angulações da janela de Overton nessas regiões.
Voltando ao mercado de investimentos no Brasil, vemos hoje que a comunidade de investidores considera aceitáveis diversas práticas que mencionamos acima. Investidores seguem alocando recursos em fundos de gestoras que agem dessa forma. Prestadores de serviço mantêm relações com esses grupos. Funcionários aceitam trabalhar — e permanecer — em gestoras que adotam práticas eticamente questionáveis.
Precisamos parar de aceitar. Precisamos parar de nos relacionar profissionalmente com agentes cujas práticas não concordamos. Ao fazermos isso, naturalmente teremos uma mudança gradual de comportamento e contribuiremos com um grande impacto positivo na sociedade.
Se queremos, de fato, gerar impacto em escala, acreditamos que o caminho mais eficiente começa exatamente por aqui.